Uma quarta forma de amar

Existe uma quarta forma de amar. E é através dela que conseguimos nos sentir um ao outro. Silenciosa, mas que faz de nós, algo encontrável.

Essa quarta forma de amar não nasceu da agregação de conceitos diversos. Todos eles passaram a ser percebidos apenas, após a chegada do outro que se supunha. Ela simplesmente surgiu. Genuína! Como que por encantamento.

Não, essa forma de amar não pode sofrer nenhuma inconstância, ela simplesmente é, ela simplesmente existe! Ela mostra-se sublimada a qualquer tentativa de controle, ela possui vida própria, emerge e reverbera , controla e sucumbe a si mesma num envolvimento quase orgasmático entre as suas ramificações emocionais.

Mostra-nos a renúncia que podemos fazer de nós mesmos, enquanto seres sujeitos às emoções rumo ao silêncio que desenterra o melhor e o pior de nossas vidas.

Meu Deus! Ela é enorme para se compreender em “muito tempo”, você precisa ficar com ela comendo-a, dormindo-a e deixando-a entrar, mesmo estando completamente acima de nossas posses. E às vezes fingimos que não a temos, só para depois ficarmos perplexos de que a possuímos, e esse susto nos remete ao melhor do primeiro encontro. Diferente, única e transgressora, se autocria e se autodevora, como “um sol que ilumina enquanto queima a si mesmo”.

Sendo mesmo capaz de fazer o ser humano experimentar ao olhar para o outro, um amor não intencionado a valores rasos, transbordante de pureza, mas que apenas pela proximidade do ser amado, desencadeia sem nenhum limite ou pudor a consciência da possibilidade de saciação dos desejos mais ardentes, mais carnais possíveis; e que por estar absorta em sensações que apenas exalam a busca pelo ser amado, transcende em busca do Divino. E diante de tantas propriedades, ela estabelece o labirinto em que supomos as nossas formas, já que nem formas mais temos. Já que nos despimos de nós mesmos e de mãos dadas comungamos com a força que nos manifesta.

Ela se acha no encontro dos olhos que revelam o que verdadeiramente acontece no coração, no toque que busca o reconhecimento do prazer vestido da forma mais humana possível, nos movimentos eróticos mais permanentes, na aceitação das imperfeições do outro. E torna-se o mais divinamente possível por passear pela imanência e fazer-se o mais igual que se supõe, ao ser amado.

É dor, é também prazer. É dúvida, mas realização. É a alegria do sorriso do menino que empina a sua pipa, descalço com os cabelos negros ao vento. É o som da fidelidade à língua materna, passos largos em passeios rachados pelas dúvidas na infância, sorrisos abertos sem nem saber por quê... É o bingo que faltam as pedras...

E nos perdemos através dela porque nem sabemos mais quem somos, afinal, nem sabemos mais onde um termina e o outro começa.

Sou eu e você. Somos nós. E é assim que nos vejo amantes, sorrindo e partindo em direção ao vento, carregando nos vazios a sombra das realizações emocionais.

E edificamos com o nosso querer mais imprudente possível o monumento ao amor de todos os tempos. E é assim essa quarta forma de amar, simples como fogo, eterna como podemos ser...

Marla Oliveira.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A MAÇÃ NO ESPELHO

A sua nudez tratava do jogo dos espelhos que sustenta com imprecisão os olhares. Não queria evitar as ambigüidades nas falas alheias sobre o que ela mesma seria, portanto trapaceava sua linguagem alargando o campo das ponderações. Estava nua, sabia, mas sabia mais... Que não possuía a menor intenção de vestir essa sua nudez que se afastava do mito bíblico de Eva. Ela não almejava o que desconhecia, tinha a autoconsciência de sua nudez. A sua roupa foi costurada há muito tempo com impossibilidades, decidiu então, que elas cairiam perdidas na floresta do inacessível.
Contudo se punia. E sua punição se manifestava através da ironia de sua crença de que se levava a sério. Era uma mentira divertida. Era uma idéia mal intencionada de sinceridade. Mas sua nudez reclamava a importância do léxico obsceno e obediente aceitava, principalmente em suas explosões de caminhos despudorados. O seu desejo a conduzia à vileza espiritual que não podia em nenhum momento ser refreado, justificado pela incapacidade de vestir-se apenas. Ela desconhecia o exercício da prudência. Deslocava-se para o olhar do outro, portanto se dizia como se queria perceber, num jogo perigoso que consistia em observar mariposas voarem até se queimarem ao sol.
Viu-se maçã, viu-se chuva e caminhou sem certezas rumo ao seu infinito.


Marla Oliveira.

OBRIGADA MARIA!


" Sou feliz porque descobri que posso ser tudo! Basta pensar. Se eu quiser voar, me imagino tendo asas e logo estarei aos céus."


Maria dos Santos. 

O Quinze, Rachel de Queiroz.

“(...) Nas horas de tempestade, abandono ou solidão, onde iria buscar o seguro companheiro que entende e ensina, e completa o pensamento incompleto, e discute as idéias que vêm vindo, e compreende retruca às invenções que a mente vagabunda vai criando?"

 


 

ELA E DEUS

Ansiosa, buscava a visão de Deus para aprovação do que fazia, quando se prostrava após os momentos de intermediação entre a realização e o desejo. Esse movimento indestrutível que a impulsionava frente às suas saciações, lhe era a única visão humana sobre a sua grandeza. Era uma mistura de dor e alucinação tão intensas que a cegava de todo o seu reinado nas dependências de si mesma. Desejava não apenas a vida, mas a sua grandeza o que seria apenas esse fato que garantiria a sua permanência como ser humano e isso era uma afronta mais que notável à soberania de Deus. A cada vez que beijava os Seus pés, percebia o distanciamento, pelo louvor que se transformava em fonte estéril de promessas e sentia vontade de correr para o seu silêncio. Mas a cada ânsia ele voltava, o desejo, agora com uma nova indumentária dando importância aos seus momentos. E se por ocasião, esse desejo fosse uma vontade de Deus? Tentou reconstruir o que pensava de si mesma e observou nascer o egoísmo dominado por indecisão e insegurança. Luz e trevas nos labirintos da carne... Descobriu que esse seu Deus não era tão poderoso assim... Permitia-lhe os acontecimentos que desejava com as características mais humanas. Quando pensava Nele deixava de existir então passou a se perceber criadora de Deus e dominou os seus acontecimentos mesmo que se alimentando de suas dores eternas.

Marla Oliveira.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

ELE, O LIVRO.

Ele emprestara-lhe um livro como fonte de águas que jorram contra a nascente. Era para ser um livro apenas, mas recebeu um corpo e respirou através do pulso da palavra. Podia ver o seu rosto traçado, subvertendo as estruturas mais dominantes de suas certezas, o que a fazia observar ainda mais, só que de forma imediata e angustiante, o seu cotidiano sempre à procura de uma luz silenciosa. Podia ter sido apenas um livro, daqueles que se transformam em pequenas pontes nas travessias de rasos rios, mas ele quis mais. Quis as mentiras exibidas como verdade fosca quis as obsessões fragmentadas em entendimentos de mundos, quis até mesmo permiti-la ouvir os seus diálogos metafísicos com o que de tão lúcido, pode ser chamado de loucura. Desagregando sua atmosfera e desconstruindo seus desejos a fez se apresentar voluntariamente e nua como personagem prisioneira de seus surrealismos. Prisioneira escolhida a viver de fomes como premiação pela suposta fuga de si mesma. E ela o condenava todo o tempo, pela arbitrariedade de impor a sua linguagem dominante de uma realidade possível, a partir da transmutação da coisa que desestabilizava o seu discurso atrelado ao imponderável universo de suas ações. Mas havia algo indecifrável em seus elementos literários, havia inquietudes que estavam em conformidade com os mistérios de sua alma. E nessa descoberta, ela se perdia... Ele, o livro, trazia olhos...
Ele era apenas um livro e ela “o que se dilata da beleza, quando lemos uma poesia”...

Marla Oliveira.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A ÁGUIA E O BEIJA-FLOR

LEAL...

Ele tinha as mãos negras que segurava o mundo. Dançava suas mazelas com a elegância de um menino que corria os campos buscando orvalho. Sua presença transbordava de expressões que reivindicavam intensidades e quando o seu silencio representava um alarme de vida, as estrelas prontamente se entregavam à desorientação do cálculo de deslocamento para enfeitar a sua alma.
Não sei explicar direito o discurso que proferiam as suas pisadas, meio que cavaleiro com armadura empunhando a sua espada. Os seus pés apalpavam a terra que pisava com a propriedade de quem partilha os seus segredos e quando imaginávamos que o seu destino era o encontro com o que há de mais profundo no ar, o descobríamos abandonando o seu corpo e construindo as nossas almas, mais que sedentas de sua doce penumbra.  Ele nos ensinava a ouvir a noite afastando as trevas, à noite sem lamento, o dia sem tormento.
Mas o seu caminhar, também trazia a desconfiança do encontro que se escancarava através de sua timidez revelada... E abria os olhos, sem a necessidade de enxergar aquilo que o horizonte havia lhe contado. Ele era só pele e sensações aclaradas, flor se abrindo e cheiro de água corrente e mais uma vez usava o recurso do sorriso como aliado de seu próprio desamparo, desmistificando seus exageros de edificador de céus azuis. Aquele homem se dissolvia em meio às brumas, tudo nele é uma nascente de fogo e água, encantamento e entrega. De seus olhos crescem moderações que procuram a salvação ao próprio risco. De seus olhos ouvimos o piar do pássaro encantado que cruza o espaço de seu dom de saber voar... Arco encantado que cruza os extremos permitindo o acontecer da vida!

Marla Oliveira

sábado, 17 de setembro de 2011

DÁ-ME A TUA MÃO


Dá-me a tua mão: 
Vou agora te contar 
como entrei no inexpressivo 
que sempre foi a minha busca cega e secreta. 

De como entrei 
naquilo que existe entre o número um e o número dois, 
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia. 

Entre duas notas de música existe uma nota, 
entre dois fatos existe um fato, 
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, 
existe um sentir que é entre o sentir 
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo 
que é a respiração do mundo, 
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio. 

Clarice Lispector

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

EU TOCO SAXOFONE

E disse de mim, quando o observei abaixar fingindo procurar algo que escorregara de suas mãos. Eram sempre elas que o denunciava de toda a crueldade compassiva, de sua solidão mais que mastigada pelas presenças distantes.
Precisava curvar-se por baixo da mesa, procurando algo que talvez escondera por todo o tempo que aprendera a dizer de si mesmo, impondo em primeiro lugar o recurso do papel de fantasma. Gostava de falar usando suas mãos em gestos, que conduzia o outro às imagens quase hipnóticas. Mas essa dança exuberante, possuía o propósito de conexão com o perigo que era o escapar das palavras, transpondo a dor envolta pelo valor do sonho.
Tudo bem, não tem problema! A sonoridade dessa pronúncia o extasiava de suas carências mais que indignas de relato. Ele, justo ele que gostava de inquietudes. Ele, justo ele que era apenas, quase um humano dono de suas dores mais sentidas... Porque ele, que se sentira ausente de subterfúgios lendo escritores alemães, tinha que se transformar nessa frieza nórdica repentina? Ele bem que podia ser condenado pela ousadia do imaginar-se a si mesmo!
Voltou às suas mãos e percebeu-as com frio...
Perguntei o seu nome e ele respondeu: Eu toco saxofone.

Marla Oliveira

terça-feira, 6 de setembro de 2011

PARTES DE UM LIVRO QUE MUITOS DEVERIAM LER




"mas se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a sabedoria nos chega quando já não serve para nada."

"as pessoas que a gente ama deviam morrer com todas as suas coisas."

"mas o exame revelou que não tinha febre, nem dor em nenhuma parte, e a única coisa que sentia de concreto era uma necessidade urgente de morrer. bastou ao médico um interrogatório insidioso, primeiro a ela depois à mãe, para comprovar que os sintomas do amor são os mesmos do cólera."

"
aproveite agora que você é jovem para sofrer o mais que puder - lhe dizia - que estas coisas não duram toda vida."

"mais de vinte anos haviam se passado desde então, e juvenal urbino ia ter em breve a idade que tinha o pai aquela tarde. sabia-se idêntico a ele, e à consciência disso se somava agora a consciência surpreendente de ser tão mortal quanto ele."

"... mas se deixou levar pela convicção de que os seres humanos não nascem para sempre no dia em que as mães os dão à luz, e sim que a vida os obriga outra vez e muitas vezes a se parirem a si mesmos."

"metia-se debaixo dele e se apoderava dele todo para ela, encerrada dentro de si mesma, tateando com os olhos fechados em sua absoluta escuridão interior, avançado por aqui, retrocedendo, corrigindo seu rumo invisível, tentando outra via mais intensa, outra forma de andar sem naufragar no alagado de mucilagem que fluía do seu ventre, se perguntando e se respondendo a si mesma com um zumbido de varejeira em seu jargão nativa onde ficava essa alguma coisa nas trevas que só ela conhecia e ansiava só para ela, até que sucumbia sem esperar ninguém, se desbarrancava só em seu abismo com uma expressão jubilosa de vitória total que fazia tremer o mundo."

"amor da alma da cintura pra cima e amor do corpo da cintura pra baixo."

"era uma flor de ontem."

"deleitava-se com os hálitos do perfume de amêndoas que lhe chegava vindo da intimidade dela, ansioso por saber como achava ela que deviam se apaixonar as mulheres do cinema para que seus amores doessem menos que os da vida."

"por outro lado, ele próprio não conseguia escapar à noção de velhice do seu tempo, o que tornava apenas natural ao ver fermina daza tropeçar à saída do cinema fosse abalado pelo raio pânico de que a puta da morte ia acabar ganhando sem remédio sua encarniçada guerra de amor."

"tampouco lhe desgostou a idéia da dentadura postiça primeiro porque uma das nostalgias da sua infância era a lembrança de um mágico de feira que arrancava de si as duas mandíbulas e as deixava falando sozinhas numa mesa, e segundo poque punha fim às dores de dente que o haviam atormentado desde menino, qause tanto e com tanta crueldade quanto as dores de amor."

"mas sua vocação de gata errante, mas indômita que a própria força da sua ternura, manteve ambos condenados à infidelidade. contudo, conseguiram ser amantes intermitentes durante quase trinta anos graças à sua divisa de mosqueteiros: infiéis, mas não desleais."
"florentino ariza, num estado de exaltação que não tinha conseguido apaziguar com quatro cálices de vinho do porto, continuou falando no passado, nas boas lembranças do passado que eram seú único tema há tanto tempo, mas ansioso por encontrar no passado um caminho secreto pra desabafar. pois disso é que sentia falta: botar a alma pela boca."

"tinha que ensiná-la a pensar no amor como um estado de graça que não era meio para nada, e sim origem e fim em si mesmo."
"porque é que você insiste em falar no que não existe?"
"deixe que o tempo passe e já veremos o que traz."

"precisa de um certo aturdimento pra não pensar na própria sorte com demasiada lucidez."
"pois tinham vivido juntos o suficiente para perceber que o amor era o amor em qualquer tempo e em qualquer parte, mas tanto mais denso quanto mais perto da morte."

"-
e até quando acredita o senhor que podemos continuar neste ir e vir do caralho? - perguntou.
florentino ariza tinha a resposta preparada havia cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com as respectivas noites.
-
toda a vida - disse."

segunda-feira, 5 de setembro de 2011




"Então me vens e me chega e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências, e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque assim que és..."



Caio Fernando Abreu

CONVERSAS


Para: Rahul

Havia um gato a me olhar pela janela. Com o seu pêlo negro e sedoso cobrindo o longo do corpo que mais parecia não ter fim. Seu olhar era de gato aprisionado, livre guardião negro de mistérios pouco humanos. Vez ou outra, lambia as suas patas protuberantes, num gesto de rainha que impunha sua mão para ser beijada, sem tirar um instante sequer, os seus olhos amarelos de minha alma.
Ele era um gato negro de olhos amarelos e a poesia que oscilava de seu gemido felino me ensurdecia de mim mesma... E falei alto aos meus pedaços! Eu podia confessar nossa amizade, mas o desejo de ser seu colo, não o seduzia. Iria conduzí-lo inevitavelmente, ao terreno do dominável e ele queria ser apenas o gato, que me desnudava sem nenhuma piedade de meus esforços mais que planetários, de não me diluir com a poeira sutil de uma outrora latente. O seu silêncio me afligia e exalava uma independência nada injusta. Tentara fechar os olhos, fugindo dessa presença invasora de medos e telhados, mas por alguma razão obscura ele me prendia à sua soberba. Ele queria esse pedaço de mim feito de sonhos e clausuras.
Ele me escolhera para brincar e eu o queria. Eu o queria estranhamente, com as suas unhas afiadas de dor e considerações vermelhas ao se reencontrar no belo espelho antes de cair ao chão. Ele me liberta e eu o delato. E prontamente me acuso de ser uma felina, confessando a distância que me aproxima inevitavelmente de suas habilidades de fuga. E me envolvi num amor repentino aceitando suas lambidas que despertavam inquietude.  E acreditei nunca mais deixar de ser os seus olhos.

Marla Oliveira.